Nesses tempos de debate político efervescente por conta da reforma previdenciária,
quando o voto de cada deputado está sob escrutínio máximo, um exercício
mental interessante é se colocar no lugar de um deputado que está no
espectro ideológico mais polêmico para a ocasião: o de deputado de
(centro-) esquerda que acredita piamente na necessidade de uma reforma
significativa. Como conciliar essas duas posições?
Examinando
o projeto concreto em votação, é óbvio que em muitas medidas ele
representa um avanço importante para o país, como a implementação de uma
idade mínima e alterações na previdência do setor público. Além disso,
ele encarna um ímpeto reformista que é muito bem-vindo em um país que
vinha evitando tais debates espinhosos. De fato, sua tramitação bem
sucedida, mesmo na ausência de um Executivo forte, depõe ainda mais
contra a apatia reformista da era PT, quando no auge de seu capital
político Lula perdeu a oportunidade de encaminhar reformas nos termos da
esquerda.
Por outro lado, ele possui problemas graves. O mais importante deles
deriva de um destaque, o último votado na comissão especial, e na calada
da noite. O destaque preservou a isenção da contribuição previdenciária
de produtores rurais que exportem pelo menos uma parte de sua produção,
e tornou possível outra vez a renegociação da dívida previdenciária dos
mesmos. Ele foi resultado de intenso lobby da CNA junto a Bolsonaro,
que já havia prometido lealdade na questão aos deputados da frente
agropecuária em uma reunião no dia da votação. Esse destaque é
extremamente relevante em termos fiscais, pois representa cerca de 10%
da poupança almejada com a reforma! Ademais, outro problema grave do
projeto atual é a exclusão dos militares.
É importante ressaltar que tais injustiças são o
modus operandi
de como a democracia brasileira lida com seus impasses. O resultado é
permitir, por exemplo, que deputados do NOVO argumentem em termos de
quão privilegiados trabalhadores que ganham 2 salários mínimos são em
comparação com quem ganha 1, e isso passar por argumento minimamente
legítimo.
Ainda assim, o argumento a favor de votar uma reforma, ainda que bem
imperfeita, é forte. Dado o dilema, é necessário então pensar o voto
para além dos termos imediatos da dicotomia responsabilidade fiscal x
justiça social presente
no projeto, e pensá-lo em termos de qual deve ser a estratégia e o papel republicano de uma esquerda no Brasil de Bolsonaro.
Aqui é importante ressaltar que o voto da esquerda na matéria não
será decisivo. Portanto, não há porque se imolar desnecessariamente no
altar do moralismo e definir o voto em termos da dramaticidade da
questão fiscal, pois a distribuição dos votos é tal que esta já estará
encaminhada.
Esta postura pragmática permite que
a esquerda se volte para o papel que deve cumprir qualquer oposição em
uma democracia representativa, que é o de vender caro seu voto a fim de
pressionar o Governo a se aproximar de sua pauta. Do contrário, se o
Congresso votasse levando em conta apenas a (justa) urgência dada pelo
comentarista liberal médio à questão fiscal, podemos imaginar um mundo
em que a reforma passaria com todos os votos a favor.
Será que uma esquerda responsável estaria cumprindo seu papel de denunciar o
modus operandi
perverso da política brasileira se carimbasse sem ressalvas essa
reforma? Ou será que é importante seu papel de denunciar simbolicamente
por meio do voto, de não deixar sumir da consciência nacional as
injustiças do processo, ainda que reconhecendo sempre a necessidade da
reforma e se colocando a disposição para negociar?
Não existe apenas uma maneira de votar “não”. O voto “não” que evita a
lógica do “quanto pior melhor” e a retórica isolante da esquerda
tradicional, mas que cumpre o papel da esquerda de ser um contrapeso no
sistema, é o voto “não” de uma esquerda que o Brasil precisa.
Raphael Martins é mestre em desenvolvimento econômico pela
Universidade de Harvard e doutorando em administração pela Universidade
de Nova York.