Matem todos os americanos
A revolta de trabalhadores na
Amazônia contra os gerentes de Fordlândia.
PARTE 3.
TERCEIRO CAPITULO
A reação foi furiosa, relembrou
uma testemunha, como "atear fogo à gasolina". O "terrível
barulho" de panelas, copos, pratos, pias, mesas e cadeiras sendo quebrados
serviu de alarme, levando ao refeitório mais homens, armados com facas, pedras,
canos, martelos, facões e porretes. Ostenfeld, juntamente com Coleman, que
havia presenciado toda a cena sem saber nada de português, pulou num caminhão
em busca de refúgio. Enquanto se apressavam para contar a Rogge o que estava
acontecendo, ouviram alguém gritar: "Vamos quebrar tudo e pegar o Ostenfeld."
Com a fuga de Ostenfeld, a
multidão ensandeceu. Depois de demolir o refeitório, destruíram "tudo de
quebrável que estivesse no caminho, o que os levou ao prédio do escritório, à
usina de força, à serraria, à garagem, à estação de rádio e ao prédio da recepção".
Cortaram as luzes da plantação, destruíram janelas, atiraram uma carga de carne
no rio e inutilizaram medidores de pressão. Um grupo de homens tentou arrancar
os pilares do píer, enquanto outros atearam fogo à oficina, queimaram arquivos da
empresa e saquearam o depósito. Os amotinados se voltaram em seguida contra as
coisas mais diretamente associadas à Ford, destruindo todos os caminhões,
tratores e carros. Para-brisas e faróis foram espatifados, tanques de gasolina
perfurados e pneus cortados. Vários caminhões foram empurrados para dentro de
valas e pelo menos um foi jogado no Tapajós. Por fim, se voltaram para os
relógios de ponto e os despedaçaram.
Um grupo foi até Pau d'Água para
pegar bebidas, enquanto outro correu para incitar mais manifestantes. Sem saber
o que estava acontecendo, Archie Weeks quase atropelou um grupo de homens
armados de porretes e facas. Girou todo o volante e acelerou, mas não conseguiu
evitar uma chuva de pedras que arrebentaram seu vidro traseiro. Quando se
sentiu a salvo, Archie escondeu o carro e foi a pé até a vila residencial dos
americanos.
Ao saber da rebelião, Rogge, que
se preparava para jantar em casa, despachou um brasileiro de confiança para
telegrafar a Belém e pedir reforços antes que a multidão tomasse de assalto a
estação de rádio. Em seguida, ordenou que Curtis Pringle, o encarregado da
plantação de seringueiras, evacuasse a maioria dos americanos, sobretudo as
mulheres, que estavam "muito nervosas". Alguns fugiram na lancha que
Rogge mantinha de prontidão. Outros se valeram de "todos os meios de
transporte, como ca-
noas, barcos a motor, cavalos
etc.".
Com o restante do seu pessoal,
Rogge foi ao encontro de um grupo de cerca de quarenta empregados que avançavam
para as casas dos americanos.
"Quais são as suas
queixas?", perguntou ele.
"Somos mecânicos, pedreiros
e carpinteiros, não garçons", responderam.
Rogge disse que eles tinham razão
e prometeu resolver o problema, mas somente se acalmassem seus companheiros.
Mas os homens enviados em busca de bebidas tinham retornado e o motim estava
"em plena efervescência". Quando Rogge ouviu um grupo de trabalhadores
bêbados cantando "O Brasil para os brasileiros. Matem todos os
americanos", decidiu que era hora de partir. Ordenou que seus homens
fossem para o rebocador, mas Archie Weeks e David Riker, que tinha acabado de
voltar do Acre, ficaram isolados da rota de fuga. Correram para a selva e se
esconderam por dois dias, enquanto continuava o tumulto.
O gerente Rogge e o resto de seu
pessoal chegaram em segurança ao barco e passaram a noite ancorados no meio do
Tapajós. Enquanto as ondas do rio batiam contra o casco, o "tremendo
barulho" que mostrava a destruição de Fordlândia continuou manhã adentro.
O levante de Fordlândia foi uma
decorrência secundária da revolução que havia abalado o Brasil meses antes e
levado Getúlio Vargas ao poder. A ascensão de Vargas se deu quase sem
derramamento de sangue, mas o entusiasmo da insurreição gerou a sensação de que
as velhas regras e hierarquias não precisavam mais ser respeitadas. Nas semanas
anteriores ao levante de dezembro, muitos americanos de Fordlândia falaram da
atmosfera carregada - provavelmente o motivo para Rogge manter um rebocador de
prontidão. "Alguns radicais entre os operários qualificados",
escreveu James Kennedy, agente de Fordlândia em Belém, "interpretaram
erradamente o sucesso da revolução em todo o Brasil, em outubro, e promoveram
agitações contra tudo que pertencesse a estrangeiros." Trabalhadores
chegaram a hastear bandeiras vermelhas sobre seus dormitórios. Mas não há
dúvida de que a ascensão de Getúlio Vargas salvou Fordlândia: o homem que ele
nomeou para substituir Eurico de Freitas Valle no governo do Pará concordou
imediatamente em dar a ajuda necessária à retomada da plantação.
A revolta começou numa
segunda-feira. Naquela noite, James Kennedy telegrafou para Juan Trippe, o
lendário fundador da Pan American Airways, em Nova York, para lhe contar que
Fordlândia estava "sob o domínio da plebe". Trippe havia aberto uma
linha entre Belém e Manaus, com uma escala em Santarém, e Kennedy perguntou se
um dos aviões poderia transportá-lo até a plantação com alguns soldados. Se não
partissem logo, alertou Kennedy, "em 24 horas o lugar seria uma ruína
completa". Trippe concordou imediatamente.
Na manhã seguinte, terça-feira,
tendo conseguido um destacamento militar da base local do Exército, Kennedy
embarcou num hidroplano Sikorsky, junto com o tenente Ismaelino de Castro e
três soldados armados. Decolando de Belém, o avião levou cerca de sete horas
para chegar à área. No início da tarde, ao amerrissar na frente da cidade de
Aveiros, pouco abaixo de Fordlândia, Kennedy e Castro foram recebidos por Rogge
e outros americanos (o restante havia fugido para Santarém). Kennedy e o
tenente decidiram passar a noite em Aveiros e seguir viagem para Fordlândia no
dia seguinte. Pela manhã, ficaram sabendo que a plantação estava silenciosa.
Mas, no mesmo dia, moradores de Pau d'Água e outras aldeias na periferia de
Fordlândia marcharam para o escritório da propriedade com armas de fogo e
facões. Irritados com os esforços da empresa para expulsá-los, eles talvez
tenham sido incitados por Francisco Franco, que teve um relacionamento cada vez
mais antagônico com Fordlândia, agravado pelas tentativas de Kennedy de
forçá-lo a vender sua propriedade em Pau d'Água.
Kennedy e Castro ordenaram ao
piloto do Sikorsky que fizesse voos rasantes para dispersar os manifestantes. O
avião desceu em seguida no Tapajós e foi até a doca de Fordlândia. A calma
parecia restabelecida, mas Castro e seus homens desembarcaram sozinhos, dizendo
a Kennedy que esperasse a bordo.
Uma delegação escolhida pelos
funcionários recebeu o tenente com uma lista de exigências à empresa. A
primeira delas era a demissão de Ostenfeld. As outras estavam ligadas ao
direito de livre circulação. Os trabalhadores exigiam comer o que quisessem e
onde quisessem. Estavam cansados de comer pão de trigo integral e arroz
integral "por motivos de saúde", segundo as instruções de Henry Ford.
Queriam frequentar os bares e restaurantes que surgiram em torno da plantação e
entrar em embarcações, supostamente para comprar bebidas, sem precisar pedir
permissão. Os solteiros reclamavam das acomodações: cinquenta deles amontoados
em um dormitório.
Nas semanas que se seguiram à
revolta, jornais regionais publicaram reportagens com outras críticas aos
gerentes da empresa. Manuel Caetano de Jesus, o pedreiro acusado de instigar a
rebelião, contou ao jornal Estado do Pará que os operários detestavam os
relógios de ponto. Não só porque não estavam acostumados com aquele tipo de
controle, mas também porque os relógios ficavam longe de seus postos de
trabalho, tornando difícil marcar o ponto, "sob pena de perderem os
salários". Mario Pinheiro do Nascimento reclamou ter de pagar pelas
refeições, o que não estava no contrato que assinara, mas também ressaltou a
"má qualidade" da comida. O pessoal da cozinha, disse ele, com
frequência servia peixe estragado, "intragável até para um cão
faminto".
Outros reclamaram que nos dias de
pagamento a empresa, dependente de remessas de dinheiro de Belém, muitas vezes
ficava sem caixa. Com isso, dava vales no lugar de dinheiro. Mas, se um
empregado tentasse sair, a empresa dificultava a "troca dos vales por
dinheiro". O hospital e a equipe médica tinham feito muito para melhorar
as condições de saúde dos moradores de Fordlândia. A taxa de mortalidade por
"beribéri e outras febres desconhecidas", no entanto, continuava
alta. As surucucus continuavam a picar as mãos dos mateiros. Outros se
queixaram de ter de trabalhar com chuva, e das idas obrigatórias ao hospital,
mesmo quando não havia motivo.
Henry Ford se opunha
visceralmente à representação coletiva dos trabalhadores. Chamou os sindicatos
de "a pior coisa que já golpeou a terra". À medida que os sindicatos
conquistavam força e popularidade, ele acrescentava líderes sindicalistas à sua
galeria de inimigos. Em 1930, Ford podia citar uma série de vitórias contra
campanhas lideradas pelos militantes das duas maiores centrais sindicais - a
iww e a cwawu da afl -, no setor automobilístico. E não aceitaria menos que
isso na Amazônia. Os homens que enviou ao Brasil sabiam muito bem o modo de
pensar do patrão em relação à inquietação operária, e aceitavam como dogma que
a empresa "não permitiria que grevistas ditassem como nosso negócio deve
ser dirigido".
Assim, Kennedy disse ao tenente
Castro que não iria atender às reivindicações dos grevistas "em hipótese
alguma". Ele, de fato, aproveitou a baderna reinante para, nas palavras de
Matt Mulrooney, "limpar a casa". Telegrafou a José Antunes, dono do
barco Zé Antunes, que se encontrava em Belém esperando para levar até Fordlândia
uma carga de produtos chegados de Nova York, juntamente com 200 funcionários
recém-contratados. Kennedy lhe disse para descarregar o barco, dispensar os
trabalhadores e ir ao Bank of London para fazer uma retirada de emergência.
Na véspera do Natal, enquanto
Kennedy esperava pelo dinheiro, encostou na doca de Fordlândia um barco
transportando 35 soldados "armados e equipados com metralhadoras". As
tropas inspecionaram a plantação e confiscaram facas, armas de fogo e qualquer
outro objeto que pudesse ser usado como arma. Em seguida, Kennedy ordenou que
os soldados expulsassem os moradores de Pau d'Água e de outras vilas que
cercavam Fordlândia. Fechou os bares, restaurantes e bordéis que por tanto
tempo incomodaram os americanos. "Ponham tudo abaixo", ordenou aos
soldados. Depois que as famílias foram forçadas a sair e suas casas foram
derrubadas, Kennedy enviou o esquadrão de saneamento para "fazer uma
limpeza", queimar as latrinas e jogar cal virgem nas fossas. Pouco depois,
com o apoio do governo Vargas, forçou Francisco Franco a lhe vender as terras
onde ficava Pau d'Água a "preço de banana".
O Zé Antunes atracou em
Fordlândia com o dinheiro solicitado no dia de Ano Novo. Ladeado por soldados
brasileiros armados, Kennedy reuniu os empregados e lhes pagou "por todo o
tempo até 22 de dezembro". Em seguida demitiu toda a mão de obra, com
exceção de umas poucas centenas de homens.
Com Fordlândia em ruínas e danos
estimados em mais de 25 mil dólares, ele aguardou que Detroit lhe dissesse o
que fazer.