Matem todos os americanos
A revolta de trabalhadores na
Amazônia contra os gerentes de Fordlândia.
PARTE II.
SEGUNDO CAPITULO
O controle se estendia à higiene
e à saúde. A empresa exigia que os trabalhadores se submetessem à coleta de
amostras de sangue para exames e a vacinações contra varíola, febre amarela,
febre tifoide e difteria. Quando os operários iam aos relógios de ponto no fim
do dia, eram esperados por funcionários da equipe médica, que lhes davam
comprimidos de quinino. Muitas vezes relutavam em tomá-los, pois a alta dosagem
prescrita pelos médicos da Ford provocava náuseas, vômitos, dores de estômago,
erupções cutâneas e pesadelos. Escondendo os comprimidos sob a língua, logo que
estavam fora de vista os trabalhadores competiam para ver quem conseguia
cuspi-los mais longe. Os médicos também insistiam que todos tomassem quenopódio
contra parasitas, sem examiná-los para saber se o medicamento era necessário.
"Os americanos acham que todos nós estamos cheios de vermes", dizia
um deles.
Ao amanhecer, quando o apito
convocava os trabalhadores a seus postos, Fordlândia quase sempre estava
envolvida pela neblina. Os gerentes americanos aprenderam que a neblina matinal
sobre o rio Tapajós acelerava a disseminação dos fungos que des-
truíam as seringueiras. Mas,
naqueles primeiros tempos, antes do ressecamento fatal das árvores, eles
achavam linda a neblina, em especial quando se misturava aos primeiros raios de
luz através das árvores. As colinas ondulantes e os vazios na área plantada já
não pareciam uma terra devastada, pois mais de 8 milhões de metros quadrados de
seringueiras de 1,80 metro de altura, alinhadas em filas perfeitas, começavam a
revelar novas copas de folhas. A paisagem era particularmente encantadora em
torno do complexo residencial dos americanos. A fileira de casas, apesar de
ficar a quase 2 500 metros da doca, estava situa-da numa elevação acima de uma
curva do Tapajós, dando aos moradores uma vista panorâmica do largo rio. Atrás
das casas, como um divisor da plantação, Archie Weeks deixara uma faixa de
floresta, criando o que os moradores chamavam de "lugar da natureza".
Com a maior parte dos perigos da
selva eliminados, era mais fácil contemplar seus prazeres. Trilhas limpas com
rastelos, folhas em decomposição que normalmente cobrem o solo da floresta se
misturavam com samambaias, palmeiras, cedros falsos e paineiras enfeitadas com
trepadeiras, bromélias, begônias e outras flores tropicais. Borboletas enormes
voavam sobre as flores, suas asas com brilhos azuis e negros. Naquele mês de
dezembro, uma dúzia de pinheiros vivos havia sido enviada a Fordlândia, para
serem usados como árvores de Natal pelos gerentes americanos com saudades de
casa.
Aos poucos, antes que o soar do
segundo apito sinalizasse o início oficial do dia, os sons matinais da floresta
davam lugar ao barulho de famílias que despertavam, mulheres ralando mandioca e
a conversa, no começo baixa e depois alegre, dos homens que se agrupavam. Os trabalhadores
vinham em sua maioria dos dormitórios dos solteiros ou do assentamento da
plantação. Também vinham da margem oposta do rio, com os remos das canoas
espalhando água e suas lâmpadas a querosene perfurando a neblina espessa,
ajudando-os a navegar. Outros chegavam de Pau d'Água ou de pequenos
assentamentos, nos limites da plantação, que resistiam às tentativas da empresa
de comprá-los ou fechá-los. Cartões de ponto eram batidos, ignições ligadas,
instruções dadas, e o dia de trabalho começava.
No final de 1930, parecia que
Fordlândia superara o difícil começo e se estabilizara numa rotina viável. A
maior parte das instalações estava construída e equipes trabalhavam na mata,
limpando mais terras, plantando mais seringueiras e construindo mais estradas.
John Rogge, nomeado gerente, providenciara para que um suprimento constante de
sementes fosse enviado da reserva indígena dos mundurucus. Rogge também havia
enviado David Riker ao Alto Amazonas, até o Acre, no extremo oeste do Brasil,
para garantir mais sementes, algumas das quais já haviam sido plantadas.
Equipes de saneamento ainda policiavam as acomodações onde viviam os
trabalhadores brasileiros com suas famílias, inspecionando latrinas e cozinhas
e certificando-se de que as roupas lavadas estavam penduradas de maneira
adequada, o lixo sendo disposto de forma higiênica e os currais mantidos secos,
bem drenados e sem fezes.
Ocupados em fazer funcionar a
plantação e a serraria, os gerentes deixaram de insistir que todos os
empregados solteiros vivessem dentro da propriedade, embora tentassem forçá-los
a al-
moçar e jantar no
recém-construído refeitório da empresa. A administração também pouco fez, nos
primeiros anos, para providenciar entretenimento aos operários. Para a maioria
deles, o dia de trabalho terminava às três da tarde. Além do jantar, os
solteiros não tinham muito o que fazer, a não ser ir a bares e bordéis das
imediações. Aos domingos, pequenos comerciantes de comunidades próximas
chegavam em canoas, barcos a vapor e veleiros, ainda amplamente usados na
época, montando um agitado mercado na margem do rio onde vendiam frutas,
verduras, carne, aviamentos, roupas e livros.
As greves, brigas de faca e
levantes que marcaram os dois primeiros anos de Fordlândia desapareceram.
Durante todo o ano de 1930 não houve incidentes importantes. Rogge concluiu que
o destacamento de soldados armados, que ficara estacionado na plantação desde o
levante de 1928, não era mais necessário. O relatório de fim de ano de
Fordlândia, compilado no início de dezembro de 1930, elogiava, se não a ética,
a "docilidade" dos trabalhadores brasileiros, que "não se
ressentem do fato de serem supervisionados por homens de outras
nacionalidades".
Mas Rogge manteve de prontidão um
rebocador e uma lancha - não na doca principal, mas rio acima -, acessíveis por
uma trilha que saía da vila americana.
A confusão começou no novo
refeitório - uma estrutura semelhante a um armazém - inaugurado poucas semanas
antes. Para fazer cumprir o regulamento pelo qual os empregados solteiros
tinham de fazer as refeições na plantação - tanto para desencorajar a ida a
bares e bordéis quanto para incentivar uma dieta saudável -, Rogge decidiu,
depois de consultar a sede da empresa, que o custo das refeições seria deduzido
automaticamente dos pagamentos quinzenais.
O novo sistema entrou em vigor em
meados de dezembro. Os trabalhadores comuns se sentavam de um lado do salão, os
artesãos qualificados e supervisores, do outro, e ambos eram servidos por
garçons. Os operários reclamaram da dieta decidida por Henry Ford, que
consistia de farinha de aveia e pêssegos enlatados, importados de Michigan,
para o café da manhã, e arroz integral e pão de trigo integral para o jantar.
Também não gostaram das deduções automáticas do pagamento, pois não poderiam
gastar o dinheiro onde quisessem. Isso também significava que tinham de fazer
fila fora do refeitório, para que funcionários do escritório pudessem registrar
a frequência, anotando os números dos crachás. Ainda assim, o esquema parecia
estar dando certo.
Chester Coleman chegou à
plantação para inspecionar as cozinhas em 20 de dezembro. Antes mesmo de
terminar seu primeiro dia em Fordlândia, sugeriu que o serviço de garçons fosse
eliminado. Recém-chegado do seu cargo de supervisor em River Rouge, com todas
as linhas de montagem e esteiras em funcionamento, Coleman propôs que todos os
homens também fizessem fila para comer. Rogge concordou e a mudança entrou em
vigor no dia 22. Ele encarregou o impopular Kaj Ostenfeld, que trabalhava com a
folha de pagamento, de deduzir o custo das refeições dos salários e se
certificar de que o plano funcionasse sem problemas. A sede da empresa
acreditava que Ostenfeld fosse um homem de "honestidade
inquestionável", embora achasse que ele poderia ser mais educado, e tenha
sugerido que ele deveria voltar a Detroit para um "aprimoramento
adicional". Há muito tempo os trabalhadores estavam insatisfeitos com suas
atitudes provocadoras.
Durante cerca de uma hora, 800
homens entraram e saíram sem problemas. Mas Ostenfeld ouviu alguns mecânicos
qualificados e supervisores reclamarem. "Quando chegaram do
trabalho", disse, "eles esperavam se sentar à mesa e serem servidos
pelos garçons" - e não serem obrigados a esperar em fila e comer com os
trabalhadores comuns. À medida que a fila aumentava, as reclamações se tornavam
mais incisivas. "Não somos cachorros", protestou alguém, "para
que a empresa nos mande comer dessa maneira." O calor sufocante não
ajudava. O antigo refeitório tinha teto de palha e as paredes eram abertas até
a metade. Apesar da aparência rústica, era bem ventilado. Já o refeitório novo
era de concreto. O teto baixo de amianto, piche e metal galvanizado retinha o
calor e transformava o prédio num forno.
Os cozinheiros tiveram problemas
para manter o fluxo de comida e os escriturários levavam tempo demais para
anotar os números dos crachás. Do lado de fora, os trabalhadores empurravam,
tentando entrar. Do lado de dentro, os que esperavam pela comida se agrupavam
em torno dos serventes, que não conseguiam colocar o arroz com peixe nos pratos
com rapidez suficiente.
Foi então que Manuel Caetano de
Jesus, um pedreiro de 35 anos do Rio Grande do Norte, forçou a entrada no
refeitório e enfrentou Ostenfeld. Já havia animosidade entre os dois, devido a
desavenças passadas, e à medida que a discussão entre eles se acalorava,
operários de roupas sujas, chapéus de palha e suados se aglomeravam em volta.
Ostenfeld sabia um pouco de português, de seu emprego anterior na
concessionária Ford do Rio, mas isso não significava que entendesse Manuel de
Jesus - que provavelmente falava rápido e com sotaque nordestino. De modo
geral, os homens da Ford entendiam pouco o português, criando situações em que
ambas as partes podiam confundir ignorância com hostilidade. Mas Ostenfeld
entendeu o significado de Jesus retirar o crachá da camisa e devolvê-lo.
Ostenfeld riu. Como declarou mais
tarde Jesus, "era como se ele estivesse se divertindo à minha custa",
coisa que "enfureceu" os que estavam próximos, acompanhando a
discussão. Segundo a versão de Ostenfeld, Jesus se dirigiu à multidão e disse:
"Fiz tudo por vocês; agora vocês podem fazer o resto."
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