Pesquisa identifica evasão escolar na raiz da violência extrema no Brasil
Dois grupos de
jovens de idade semelhante, todos homens, pobres e criados na mesma
região. Um grupo vira matador e o outro, trabalhador. Por quê?
O
sociólogo Marcos Rolim procurou essa resposta ao investigar a violência
extrema, aquela que mata ou fere mesmo quando não há provocação nem
reação da vítima. Modalidade que, acredita ele, está em alta no Brasil.
- Como e por que as gangues dominaram as prisões dos Estados Unidos e do Brasil
Em
experimento inédito no país, ele entrevistou um grupo de jovens
violentos de 16 a 20 anos que cumpriam pena na Fase (Fundação de
Atendimento Socioeducativo) do Rio Grande do Sul. Ao final, pediu que
indicassem um colega de infância sem ligação com o crime e foi atrás
dessas histórias.
Rolim esperava que prevalecessem, no grupo dos
matadores, relatos de violência familiar e uso de drogas, mas outro
fator se destacou: a evasão escolar (quando o aluno deixa de frequentar a
escola). E, aliado a isso, a aproximação com grupos armados que
"treinam" esses jovens a serem violentos.
Entre os que cumpriam
pena, todos, sem exceção, tinham largado a escola entre 11 e 12 anos. E
citavam motivos banais: são "burros" e não conseguem aprender, a escola é
"chata", o sapato furado era motivo de chacota. Os colegas de infância
continuavam estudando.
Ao comparar esses e outros casos (111 ao
todo), incluindo dois grupos de presos jovens do Presídio Central de
Porto Alegre, uns condenados por homicídio e outros por receptação, e
alunos de uma escola de periferia sem histórico criminal, concluiu que o
chamado "treinamento violento" respondeu por 54% da disposição para a
violência extrema.
Em outras palavras, isso significa que sem a
experiência do "treinamento violento" - aquela que ensina a manusear
armas, bater antes de apanhar e exalta atos de violência - a disposição
para esses crimes extremos cairia para menos da metade nos casos
analisados.
As conclusões de Rolim, que foi vereador em Santa
Maria (1983-1988), deputado estadual (1991-1999) e deputado federal pelo
PT gaúcho (1999-2003) e hoje não tem filiação partidária, estão no
livro recém-lançado A Formação de Jovens Violentos - Estudo sobre a Etiologia da Violência Extrema (editora Appris).
"Muitos meninos que se afastam da escola são, de
fato, recrutados pelo tráfico de drogas e são socializados de forma
perversa. E isso provavelmente deverá se repetir se a pesquisa for
reproduzida em outros locais, pois a diferença estatística foi muito
forte", diz Rolim à BBC Brasil.
A conclusão prática, segundo o
sociólogo, é que a prevenção da criminalidade deve levar em conta a
redução da evasão escolar, aspecto que costuma ser negligenciado no
Brasil quando o assunto é segurança pública.
Considerados os índices de evasão escolar, o cenário no Brasil seria, de fato, favorável à violência extrema.
Em
2013, por exemplo, uma pesquisa do Pnud (Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento) mostrou que um a cada quatro alunos que inicia o
ensino fundamental no país abandona a escola antes de completar a
última série.
O Brasil figurava no estudo com a terceira maior
taxa de abandono escolar entre os 100 países de maior IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano), atrás apenas da Bósnia e Herzegovina e do
arquipélago de São Cristóvão e Névis.
Razões da evasão
E por que as escolas não conseguem manter esses jovens na escola?
Embora
o assunto não tenha sido foco da pesquisa, Rolim arrisca algumas
possíveis explicações, a partir do contato com colegas que desenvolvem
pesquisas em instituições de ensino.
A primeira, diz, é o despreparo de professores para lidar com alunos mais vulneráveis e problemáticos.
"O
jovem de área de exclusão, que nunca abriu um livro e tem pai
analfabeto, tem toda uma diferença de preparação, e grande parte dos
professores não está preparada para lidar com ele", afirma.
Rolim cita como exemplo um caso recente registrado em Porto Alegre.
"A
pesquisadora presenciou uma cena de indisciplina de um aluno de 10 anos
em uma turma pequena; a professora conhecia todos. Ela disse ao menino:
'Tu vai ser bandido como seu pai'. Esse tipo de reação é inaceitável",
conta.
Outra possível causa, segundo Rolim, está na falta de conexão das escolas com as comunidades em regiões violentas.
"Pelo medo do crime, a escola deixou de se relacionar com as comunidades nas periferias. Transformaram-se em bunkers
com grades, cadeados, polícia na frente. Não prestam serviços, não
abrem aos finais de semana, pais e parentes não a frequentam."
O terceiro problema seria a própria educação oferecida na escolas públicas.
"Basicamente, a mesma de 50 anos atrás", afirma o sociólogo.
"Hoje
é impossível lidar com crianças conectadas, mesmo as mais pobres, do
mesmo jeito. A escola se tornou espaço de pouco interesse e atração para
o jovem das periferias", acrescenta.
Violência futura
Em
2015, último dado disponível, o Brasil registrou 170 assassinatos por
dia - foram 58 mil homicídios naquele ano, número mais alto do que os de
países em guerra. A taxa daquele ano, de 29 casos por 100 mil
habitantes, insiste em não baixar.
Na visão de Rolim, o Brasil está "contratando violência futura" em escolas, prisões e nas próprias instituições policiais.
Nas prisões, isso se dá, segundo ele, pela reclusão por crimes patrimoniais.
Dados
do governo mostravam que, ao final de 2014, 66% da população carcerária
brasileira estava atrás das grades por crimes de drogas, roubos ou
furtos - casos de homicídios eram apenas 10%. Jovens negros e de baixa
escolaridade são maioria.
"Temos um perfil de encarceramento que
não pega autores de crimes mais graves, e pegamos um monte de jovens
pobres na periferia, pequenos traficantes e usuários, e vamos recrutando
essas pessoas para as facções que atuam nos presídios", diz Rolim, para
quem o Estado brasileiro é o "principal recrutador de mão de obra para
as facções criminosas".
E os homicídios continuam em alta - estudo recente
do Fórum Brasileiro de Segurança Publica mostrou, por exemplo, que um em
cada três brasileiros diz ter parente ou amigo vítima de assassinato -
porque falta investigação e foco dos governos nesse problema, opina o
pesquisador.
"A redução dos homicídios não é a prioridade número 1
em nenhum lugar do Brasil. Como grande parte das vítimas é pobre, não
há pressão social para investigação. E você lança uma mensagem de que o
crime compensa", afirma Rolim. Estudos costumam apontar que menos de 10%
dos homicídios no Brasil resultam em condenação.
O investimento, avalia o especialista, deveria ser reforçado na repressão a homicídios e a crimes sexuais.
"E
se for para continuar a política de repressão ao tráfico, temos que ir
atrás de financiadores, rotas e usar muito mais inteligência do que em
prisões em flagrante", argumenta.
Iniciativas de resultado
No
meio do que classifica como "desgraça geral" das políticas de segurança
no Brasil, Rolim destaca iniciativas voltadas a jovens que mostraram
bons resultados na prevenção da violência.
O POD (Programa de
Oportunidades e Direitos) RS Socioeducativo, criado em 2009 no Rio
Grande do Sul, atende jovens infratores de 12 a 21 anos que deixam o
sistema de internação.
Cada jovem passa a receber, por um ano,
uma bolsa de meio salário mínimo (R$ 468,50), vale-transporte e
alimentação, desde que frequente cursos de formação em áreas como
informática, mecânica e manutenção predial.
Segundo o governo gaúcho, a cada dez jovens atendidos pelo programa, apenas três reincidem no crime.
No entanto, Rolim acredita que iniciativas semelhantes ainda sejam pouco divulgadas.
"A
população gaúcha, por exemplo, pouco sabe da existência desse programa,
porque gestores ficam provavelmente com medo de divulgar e serem
criticados por 'estarem dando dinheiro a bandidos'", diz.
"Essa
ideologização do tema da segurança pública é outro lado tenebroso dessa
história; você acaba perdendo a capacidade de execução de políticas no
setor", acrescenta.
A cidade de Canoas, na Grande Porto Alegre,
criou o programa Cada Jovem Conta, que procura identificar jovens de
escolas públicas com comportamento de risco para ações de prevenção à
violência.
O jovem passa ser acompanhado por uma equipe de
diferentes secretarias, como saúde, educação e assistência social, para
que frequente atividades esportivas e culturais, entre outras.
A
prefeitura de Canoas afirma que mais de 60% dos jovens atendidos
melhoraram o desempenho escolar ou voltaram à escola, e suas famílias
passaram a frequentar mais os serviços públicos locais.
Neste mês,
a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto do
senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG) que altera o Estatuto da Criança e
do Adolescente para elevar de três para oito anos o tempo máximo de
internação para jovens infratores.
A medida, que ainda deverá ter
mais uma votação na comissão antes de ir à Câmara, valeria para atos
infracionais análogos a crimes hediondos - como estupro e homicídio -
cometidos com uso de violência ou grave ameaça.
Rolim diz
concordar com o aumento do tempo de internação para um "perfil restrito
de jovens" reincidentes, mas criticou a associação com crimes hediondos,
que no Brasil incluem o tráfico de drogas.
"Isso colocaria a
maioria dos jovens sob a possibilidade de (cumprir) oito anos de pena.
Hoje se um jovem der um cigarro de maconha a outro, for flagrado e o ato
for equiparado a tráfico, é crime hediondo. Elevar o tempo de
internação não é problema, mas estabelecer isso para crimes hediondos é
uma impropriedade absoluta", conclui.
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